Há um mês, uma proposta de lei do PS veio acicatar o aceso debate sobre o alojamento local. Um artigo que escrevi a defender que sujeitar o alojamento local à autorização do condomínio iria gerar uma falha de mercado maior que aquela que pretendia corrigir recebeu vários comentários. Aqui e nas redes sociais, foram vários os argumentos de ambos os lados da barricada. Com os ânimos (ligeiramente) menos exaltados, é a altura de regressar a alguns deles.

Há quem considere que o alojamento local é equiparável à hotelaria, advogando, assim, que esta lei é desnecessária, pois a alteração de uso de uma fracção já pressupõe o aval dos demais proprietários do prédio. Juridicamente, a questão é confusa e tem merecido diferentes decisões, o que atesta a sua complexidade. Talvez por isso tendamos a fugir dela. Eu, conforme escrevi, vejo o alojamento local algures entre o arrendamento convencional e a hotelaria: não é um, não é outro, é algo de intermédio. Até porque, no conceito de alojamento local cabem situações diversas, desde o hostel ao mero sofá-cama. Arrendar uma casa a estudantes não faz dela uma residência universitária; do mesmo modo que os arrendatários, sendo turistas e só ficando alguns dias, não transforma a fracção num hotel. O alojamento turístico, conforme definido no artigo 43º do Decreto-Lei n.º 39/2008, oferece serviços de recepção ao público em geral. Esta não é a realidade do alojamento local: eu posso ir a passar na rua e decidir entrar num hotel onde não sou hóspede, mas o meu acesso a uma unidade de alojamento local está condicionado.

Esta diferença é significativa, já que o debate conceptual – que eu acho muito estimulante – é pertinente na medida em que permita perceber quão potencialmente geradoras de conflito são as características do alojamento local. Eu usei a minha experiência pessoal para explicar porque não ligo turistas a desacatos, mas a argumentação subsequente foi feita na base de que o alojamento local tem externalidades negativas. E uma das minhas conclusões era a de que a referida proposta legislativa viria beneficiar quem tivesse poder para adquirir um prédio inteiro (ou a maioria dele, consoante a deliberação fosse por maioria ou unanimidade). Fernanda Câncio chamou este argumento de parvo, porque não há razão para os condóminos rejeitarem uma actividade que não os perturba. Claro que há. Chama-se racionalidade económica. A partir do momento em que se dá aos vizinhos o poder de decisão, eles vão exercê-lo; mesmo sobre as coisas que não os afectam minimamente. E podemos sempre lembrar-nos do óxido de hidrogénio; para quem não sabe, é água e houve abaixo-assinados para bani-lo: devemos, pois, concluir que é uma coisa prejudicial?!

Um dos meus pontos era o de que, para lidar com um dos mais citados problemas do alojamento local, o do barulho, já existe uma lei do ruído. Se ela se mostra ineficaz, melhoremo-la. A isto responderam-me que só se pode chamar a polícia quando o sossego já foi perdido. Eu nunca colocaria em causa a legitimidade do direito à tranquilidade. Mas também defendo o direito a dispor da propriedade privada. Quando estes dois direitos igualmente importantes se encontram em potencial conflito, conhecer a realidade é fundamental para determinar como agir e quem proteger. Julgo que todos nós vemos o direito à vida como inquestionável. Mas bem sabemos que ocorrem homicídios e que não há nada a fazer depois de uma pessoa estar morta. Seria, então, razoável prender preventivamente todas as pessoas, privá-las de algo também fundamental, a liberdade, para salvaguardar que ninguém tinha a sua vida roubada?! Parece-me que não. E essa opinião decorre do facto de o direito à liberdade não representar uma grande ameaça ao direito à vida. Ao contrário, por exemplo, de um eventual direito a conduzir como me apetece. Ou seja, estas decisões devem basear-se em informação estatística. Qual é a percentagem de noites passadas em alojamento local de que resultam problemas? António Frias Marques, presidente da Associação Nacional de Proprietários, diz que diariamente recebe queixas, que são centenas. Eu contactei-os várias vezes para obter os números precisos, mas não obtive (ainda) resposta. E não encontrei tais dados em qualquer outro sítio (o que não surpreende).

Também li que os proprietários deviam ser devidamente compensados pela perda de valor das suas casas decorrente da existência de alojamento local no seu prédio. Aqui confesso a minha total surpresa. É que ia jurar que este discurso veio exactamente das mesmas pessoas que levaram semanas a acusar o turismo em geral e o alojamento local em particular da subida do preço do metro quadrado. Que, regra geral, coincidem com as pessoas que falam da expulsão dos habitantes do centro das cidades. Nova surpresa. Eu não diria que o argumento é parvo, mas falta-lhe consistência. Senão vejamos. Se os residentes são expulsos de onde vivem é porque as casas que habitam não lhes pertencem. Logo, as pessoas que sofrem os tais efeitos nefastos do alojamento local não seriam as que teriam o poder de vetá-lo e de se fazer pagar pela acta a autorizar o acolhimento de hóspedes.

Finalmente, uma referência ao argumento da força (não confundir com a força do argumento): há já inúmeras cidades que estão a limitar de alguma forma o alojamento local. Eu gosto muito quando a razão para se fazer alguma coisa é simplesmente o facto de outros estarem a fazê-lo. Principalmente, quando o estão a fazer há tão pouco tempo que ainda não existem dados sobre as consequências da adopção de tais medidas restritivas. No caso português, parece ser um certo complexo de que lá fora é sempre melhor. Bom, se assim é, talvez seja conveniente arranjarmos um partido populista que conquiste muitos votos, para copiar o exemplo que vimos Europa fora. Fica o argumento refutado, espero.

 

Vera Gouveia Barros, economista

Nota: Vera Gouveia Barros escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

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