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O pesadelo de Marx aos olhos do FMI

Em ‘O Capital’, escrito no século XIX, Karl Marx antecipou um futuro conturbado para as sociedades industrais da época.
21 Abril 2017, 19h19

Segundo o autor alemão, o funcionamento do capitalismo levaria naturalmente, e por uma convoluta sequência de processos económicos, à acumulação de rendimento nas mãos dos capitalistas. Marx explicou também (ou pelo menos tentou explicar) por que é que os ganhos dos capitalistas seriam obtidos às custas dos ganhos dos trabalhadores – o que levaria, a prazo, a uma sociedade cada vez mais fracturada ao longo das linhas de classe.

Um ponto importante a notar é que Marx não estava preocupado com um dos fenómenos marcantes da nossa era: a crescente desigualdade entre trabalhadores, como as que se notam dentro de cada empresa (CEO’s versus empregados) ou de sector para sector (artistas do desporto contra profissões mais típicas). A sua mente estava ocupada com uma questão mais fundamental: a luta entre quem detém os meios de produção e quem efectivamente os usa para produzir: patrões de um lado, assalariados do outro.

Mas as preocupações de Marx nunca tiraram o sono aos economistas, sobretudo depois de um dos mais distintos representantes da classe, Nicholas Kaldor, ter descoberto no registo histórico uma extraordinária estabilidade na fracção do Rendimento Nacional recebida pelo capital. Escrevendo nos anos 50, com os dados disponíveis à época, Kaldor descortinou uma tendência secular: apesar de inegáveis flutuações de circunstância, no longo prazo os trabalhadores acabavam sempre por absorver, como salários, dois terços do PIB.

Desde os anos 80 que isto tem vindo a mudar. Primeiro, os factos em si: após décadas de estabilidade, a percentagem de Rendimento absorvida pelo capital começou lentamente a engordar. E, pouco a pouco, a própria atenção dos economistas. Depois de um desinteresse olímpico em torno do que determina a evolução do rácio capital/trabalho, nos últimos anos sugiram imensos estudos a tentar explicar as flutuações mais recentes, invocando hipóteses como a diminuição do preço do capital, a deslocalização de empresas para destinos de salários baixos, avanços tecnológicos, a diminuição da concorrência entre empresas e a emergência das chamadas firmas super-star, que dominam todo o sector e têm assim margem de manobra para ‘ditar’ os salários praticados.

O tema tornou-se agora tão incontornável que o próprio FMI decidiu abordá-lo no World Economic Outlook. Em Understanding the Downward Trend in Labor Income Shares, o FMI usa uma nova base de dados (e uma boa dose de econometria) para responder a duas questões: i) como tem evoluído afinal a ‘fracção do trabalho’ no rendimento nacional? ii) quais são os mecanismos por detrás desta evolução?

Os ‘factos’ da questão são os mais fáceis de identificar. O FMI documenta uma descida consistente do labor share – a percentagem do PIB que aflui aos trabalhadores – em muitos países, mas também nota que há casos (mesmo que menos numerosos) onde se nota um movimento inverso.

No geral, contudo, o movimento é de descida. A imagem de seguinte mostra o declínio do labor share para as economias avançadas e para as economias em desenvolvimento. A ideia global é diferente da anterior porque neste caso as maiores economias têm um peso proporcional ao seu tamanho.

E o que está por detrás dos factos? Para iluminar esta questão, o Fundo utiliza métodos empíricos e uma boa dose de criatividade para ‘despistar’ explicações concorrentes. Por exemplo, uma das hipóteses em cima da mesa é a possibilidade de a automatização de tarefas ter diminuído o salário de alguns trabalhadores, sendo a poupança ‘absorvida’ pelas empresas. Neste caso, o FMI constrói um índice de ‘exposição à automação’, comparando-o de seguida com o comportamento do labor share.

Os leitores mais interessados na parte técnica podem consultar o anexo do estudo (disponível aqui e em versão user friendly aqui), que faz uma descrição detalhada do tortuoso caminho que os economistas percorreram até chegar às conclusões. Para os mais apressados, aqui fica um resumo das principais:

Tecnologia: o maior culpado. Desde os anos 80 para cá que o preço dos bens de investimento tem vindo a descer (ou a subir menos do que o preço dos restantes bens). Uma implicação teórica deste movimento singular é o facto de tornar mais rentável a substituição de trabalhadores por capital – ou, o que é mais ou menos o mesmo, o facto de contribuir para a mecanização e automatização da produção. O FMI olhou para os dados e constatou que é esse o caso. Há uma grande correlação entre factores como aa descida do preço dos bens e investimento, a exposição à mecanização, por um lado, e o declínio do labour share, por outro. Isto é verdade sobretudo no caso das economias mais avançadas.

Globalização: sim, mas. Os modelos mais simples do comércio internacional sugerem que as trocas comerciais, apesar de mutuamente proveitosas para todos os países, podem causar uma grande redistribuição de rendimento dentro de cada um. Fenómenos como a deslocalização de empresas, a abertura do comércio a países de baixos salários podem, em princípio, exercer pressão sobre alguns salários e fomentar os lucros de algumas empresas (Krugman tem aqui uma exposição magistral da mecânica destes modelos). Mas, quando olharam para os dados, os economistas do FMI descobriram que a história é mais complicada do que parece. O comércio, por si mesmo, não parece ter grande influência; para que o labor share se ressinta, é preciso que haja lugar a elementos particulares da globalização – coisas como a deslocalização de empresas, participação em cadeias de valor globais, etc. Para que os problemas surjam, é necessário uma receita bem definida. Mas, quando os ingredientes certos estão presentes, o seu impacto pode ser muito substancial.

Política e instituições: o mordomo inocente. As últimas décadas foram férteis em mudanças políticas e institucionais nas economias avançadas. Entre estas tendências contam-se a descida das taxas marginais de impostos sobre as pessoas particulares, a competição fiscal pela re-localização de empresas, a diminuição intensa da percentagem de trabalhadores sindicalizados, desregulação de mercados, etc. Para muitos economistas, estas mudanças faziam o papel de mordomo nos policiais: o culpado óbvio que nunca ninguém começa por incriminar. Mas a análise do FMI não encontra evidência a favor desta hipótese. Depois de olhar para os dados de vários ângulos, nenhum destes factores parece influenciar a descida do labor share.

Outra conclusão inesperada do estudo do Fundo é que os custos da descida do labor share têm sido sobretudo suportados pelos trabalhadores de profissões com graus de sofisticação intermédia. São estes – e não necessariamente os que estão em funções mais indiferenciadas – que estão mais expostos aos fenómenos da mecanização e da globalização. E que portanto terão mais a ganhar com as propostas do FMI: upgrade de qualificações, melhores oportunidades de ensino, políticas activas de emprego e – quando nada disto for suficiente – mais redistribuição.

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