“Não é novidade que a reduzida poupança das famílias é um motivo de preocupação para a economia portuguesa, aflita em financiar o investimento…”; “No caso de Portugal trata-se, sobretudo, de incentivar a poupança que, por sua vez, financia o investimento (que escasseia).”; “Nós precisamos de poupança, que é o elemento mais amigo que há do investimento…”; “Como pode haver investimento se a poupança não chega a formar-se, levada pelo Estado?” A ideia de que as poupanças são necessárias para financiar o investimento é afirmada frequentemente por jornalistas, economistas e políticos e, verdade seja dita, está de acordo com o que é ensinado em quase todos os cursos de economia do mundo e com o que está escrito em quase todos os livros do mesmo tema. No entanto é falsa.

A causalidade em questão assenta numa interpretação errada da identidade em Contabilidade Nacional, que diz que o investimento é igual à poupança, e na concepção convencional do funcionamento dos bancos e do seu papel na economia, segundo a qual os bancos precisam de obter depósitos antes de concederem empréstimos.

Começando pelo primeiro ponto. Na análise económica, uma pessoa, empresa ou outro qualquer agente económico pode possuir activos não financeiros (habitualmente denominado capital), activos financeiros e também passivos financeiros. O seu balanço é dado pela soma destas componentes, ou seja pelos activos não financeiros mais a sua posição financeira líquida. Investir entende-se por acumular activos não financeiros e, portanto, a despesa em bens de investimento é precisamente a que contribui para esse efeito por oposição à despesa em bens de consumo.

Isto significa que uma despesa em bens de investimento tem um efeito nulo no balanço de quem faz essa despesa, uma vez que a redução da posição financeira líquida é compensada por um igual aumento dos activos não financeiros. Por esta razão a poupança de um agente num determinado período, que é simplesmente a melhoria do seu balanço, é definida como rendimento disponível nesse período menos a despesa efectuada em bens de consumo.

Como cada activo financeiro é o passivo financeiro de outro agente, no agregado (numa economia fechada ou no mundo inteiro) a posição financeira líquida é nula e, portanto, a melhoria do balanço só pode ser feita pela acumulação de activos não financeiros. Ou seja, no agregado, só podemos poupar activos não financeiros o que significa que o que poupamos é igual ao que investimos, ou melhor, o que poupamos é o que investimos. Como se pode, ver isto não diz nada acerca do financiamento do investimento. Neste aspecto as despesas de investimento não diferem em nada das despesas de consumo. Para mais detalhes sobre esta questão aconselho estes excelentes artigos de Fabian Lindner e ainda este de Basil Moore.

O segundo ponto é uma velha discussão. Os bancos precisam ou não de obter depósitos para conceder empréstimos? A visão convencional diz basicamente que a quantidade de empréstimos que os bancos podem conceder é um múltiplo da base monetária (reservas e moeda em circulação) que, por sua vez,é controlada pelo Banco Central. O mecanismo é o seguinte, suponhamos que o Banco Central aumenta a base monetária, o banco que recebe essa quantia apenas tem que conservar uma pequena fracção, podendo emprestar o restante que, por sua vez, vai parar a outro banco que conserva outra pequena fracção e empresta o remanescente.

O mecanismo repete-se até que o limite máximo seja atingido. Em cada passo o banco obtém o depósito e só depois concede o empréstimo. Nesta visão, os bancos são simples intermediários financeiros sem qualquer controlo sobre a quantidade de dinheiro em circulação sendo esse controlo exercido pelo Banco Central.

Uma visão alternativa, defendida por economistas heterodoxos há muito tempo, é a de que os bancos criam depósitos quando concedem empréstimos e só depois procuram obter as reservas obrigatórias que, em último caso, o Banco Central fornece a um determinado preço. Neste caso, os bancos são limitados na criação de dinheiro apenas pelas suas perspectivas de rentabilidade dos empréstimos que concedem e restrições de capital (estas restrições de capital nada têm que ver com a obtenção de depósitos, mas sim com a captação de fundos dispostos a partilhar o risco da actividade bancária, uma discussão que fica para uma próxima vez).

O confronto entre estas duas visões foi bem visível numa troca de artigos entre Paul Krugman e Steve Keen há uns anos atrás, a que se juntaram outros intervenientes, com Krugman a afirmar, por exemplo, que “…qualquer banco individualmente tem, de facto, de emprestar o dinheiro que recebe como depósitos.” Um resumo do debate pode ser encontrado aqui, uma entrevista com Keen sobre este aqui e destaco ainda este excelente artigo de Scott Fullwiler neste mesmo debate.

No princípio de 2014, economistas do Banco de Inglaterra vieram esclarecer a questão, ao afirmarem categoricamente que a versão convencional, presente na esmagadora maioria dos livros de economia, estava errada. Recentemente, numa publicação oficial do FMI, um artigo intitulado “A verdade sobre os bancos” veio afirmar o mesmo, referindo também que a poupança não financia o investimento.

É verdade que para os bancos é preferível financiar os seus activos, leia-se empréstimos, com depósitos sobre os quais pagam juros reduzidos ou nulos e por essa razão competem pela sua captação, mas não é a falta de depósitos que os impede de conceder empréstimos que considerem rentáveis. O problema é que, num cenário de crescimento reduzido, o pessimismo e a prudência falam mais alto e muitos empréstimos que seriam considerados rentáveis em períodos de expansão, deixam de ser concedidos.

A falta de investimento é um problema, mas para o resolver é importante identificar as suas verdadeiras causas. Tendo em conta que “O principal fator limitativo do investimento empresarial identificado pelas empresas nos dois anos analisados foi a deterioração das perspetivas de venda, seguindo-se a incerteza sobre a rentabilidade dos investimentos” e as consequências negativas da poupança para o crescimento económico, ao incentivarmos a poupança podemos obter o efeito contrário do pretendido.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.