Na passada quarta-feira, deu entrada na Assembleia da República uma proposta de lei destinada a alterar o regime de alojamento local. No seu preâmbulo, pode ler-se que os turistas têm um comportamento mais descontraído que se traduz em barulho e desrespeito pelo sossego de quem habita os locais onde eles pernoitam (tardiamente, pelos vistos). Pessoalmente, quando vou de férias, gosto de conhecer a região onde me instalo. A grande parte do meu dia é passada a andar, deambulando pelas ruas, indo aos monumentos, entrando em museus, procurando onde experimentar a gastronomia local. Chegada à noite (não à madrugada), estou cansada e quero dormir, para no dia seguinte passar mais um dia a andar. Por isso, fico sempre muito intrigada quando se associa turismo a desacato. Mas tenho de admitir que os gostos diferem e é possível que quem nos visita prefira usar as 2,27 noites da estada média para organizar uma megafesta na unidade de alojamento local, com bebida à discrição.

Admitamos, pois, que a actividade de alojamento local tem aquilo que em Economia se chama externalidade negativa. E vamos supor, ainda, que é a única que existe num prédio: não há casais que discutem aos berros e com vernáculos à hora de jantar ou ruidosamente apaixonados, nem crianças que fazem do chão pista de carrinhos às 7h da manhã de Sábado, nem idosas com problemas auditivos que põem o televisor com o volume no máximo, nem bebés a chorar com cólicas uma noite inteira.

Nada disso. A vida em comunidade é perfeita e tranquila, excepto quando perturbada pelo alojamento local. Também podemos assumir que os distúrbios provocados pelos nossos vizinhos não nos incomodam (ou incomodam menos) que o barulho que os turistas fazem. É talvez por não compreendermos o que eles dizem em francês. Se assim for, posso perceber que não se tente aquilo que seria óbvio, pôr a lei do ruído a funcionar, e se parta logo para um solução de recurso, que é sujeitar o alojamento local ao consentimento do condomínio.

Não é preciso ser-se dotado de grande imaginação para prever que esta medida vai tornar as maçadoras reuniões de condóminos em animados regateios pela acta avalista. A solução parece inspirada por Ronald Coase, o economista prémio Nobel que, em 1960, mostrou que a negociação pode resolver problemas de externalidades. Mas, conforme ele explicou, isso só funciona em condições específicas, designadamente quando está bem definido quem tem direito a quê. Por exemplo, são os vizinhos que têm o direito ao silêncio ou é o proprietário que tem o direito a entregar a casa a quem quer, sem se preocupar com o ruído?

Aqui começam as dificuldades. Poderemos todos concordar que o alojamento local está algures entre o arrendamento convencional e a hotelaria. E creio que todos concordamos que o primeiro não deve estar sujeito à autorização dos vizinhos. Ora, coloca-se a árdua questão de saber com qual das duas situações mais se parece o alojamento local. Principalmente, quando o Decreto-Lei N.º 128/2014 não exclui da noção a oferta de apenas um quarto na casa em que se reside, mas veda a “colocação sob a figura e regime do alojamento local de empreendimentos que cumprem com os requisitos dos empreendimentos turísticos”.

O que esta proposta de lei faz é, precisamente, dar uma vantagem a quem tem a capacidade de adquirir um prédio inteiro (presumindo que a deliberação tem de ser por unanimidade, que uma simples maioria não basta). Ou seja, de perverter o que é o espírito do alojamento local. No fundo, manter a terminologia, mas acabar com o conceito. E, se hoje o grande transtorno é um apartamento num prédio, amanhã será um prédio numa rua e depois uma rua no bairro… Curiosamente, esta lei, se for aprovada, acabará por promover guetos para turistas. É um incentivo à segmentação do território. E, conforme referi num artigo há umas semanas, os turistas não querem isso. Os habitantes também não.

Por outro lado, como esta alteração não deverá ser implementada retroactivamente, vai-se proteger da concorrência quem já está no mercado. Ou seja, os actuais detentores de alojamento local agradecem. A economia do país é que fica sem motivos para agradecer: para se corrigir uma pretensa falha de mercado sob a forma de externalidade negativa, gera-se uma outra falha de mercado chamada poder de mercado.

Naquele mesmo preâmbulo, também se lê que o alojamento local tem “uma muito expressiva incidência nos centros históricos das cidades.” Os dados mostram que a maioria das unidades se situa no Algarve. Mas, como tantas vezes acontece, estamos preparados para legislar em função das situações minoritárias, arranjamos leis que vão ser aplicadas a todos para tentar resolver problemas que são muito específicos, em vez de optarmos por soluções inteligentes e inovadoras pensadas para aqueles casos em concreto. Quero acreditar que haver eleições autárquicas este ano é só uma coincidência. E quero, sobretudo, acreditar que não nos vamos auto-sabotar, destruindo um sector que tem impulsionado o crescimento económico do país e onde o sucesso não “aconteceu” simplesmente.

A autora escreve segundo a antiga ortografia.

 

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