Tivemos a semana passada aqueles quatro dias do ano em que pessoas despenteadas e de calças de ganga não merecem ser ostracizadas, porque podem, afinal, ser gente “muito importante”, podem ser cavaleiros de um unicórnio. Eu não sei qual a relevância de business angels e Victoria’s angels para o estímulo do empreendedorismo; desconheço quantas startups saem aceleradas dos pavilhões da FIL; ignoro quão inspiradora foi a conversa entre a Sophia e o Einstein.

No que me interessa, a Web Summit representa quase 60.000 participantes, vindos de 170 países, que levam as taxas de ocupação da hotelaria para os 80%; são mais de 2500 jornalistas, que contribuem para promover o destino Portugal. É o exemplo perfeito do turismo de eventos que já Michael Porter nos recomendava. Para o ano há mais. Depois, logo se verá. Paddy Cosgrave descreveu a ligação entre a conferência e Lisboa como o casamento perfeito, mas quantos idílicos matrimónios terminaram em divórcio? Principalmente quando há uma sogra intrometida.

Quando, em Setembro de 2015, Paddy Cosgrave anunciou que Lisboa se seguiria a Dublin, a decisão foi justificada pela oferta de infra-estruturas da capital portuguesa, designadamente as de acomodação. Mas isso pode estar prestes a mudar. A sogra desta história chama-se “Projeto de Lei n.º 653/XIII/3.ª”. É a proposta de alteração legislativa que o Bloco de Esquerda entregou na Assembleia da República no passado dia 25 de Outubro, que pretende limitar a 90 dias anuais por ano a disponibilização de alojamento local. E que quer que o alojamento local corresponda à residência fiscal do seu proprietário. Curiosamente, exige-se que todas as unidades de alojamento local – sejam elas moradias, apartamentos ou quartos – afixem, no seu exterior, uma placa identificativa (por coerência, só durante os 90 dias, imagino eu). E tudo isto com efeitos retroactivos.

Na sua exposição de motivos, começa o BE por afirmar que o alojamento local se tornou num negócio que em nada se distingue do dos empreendimentos turísticos. Ora, é só ir ler a legislação (Decreto-Lei n.ᵒ 39/2008, devidamente acompanhado da Portaria n.ᵒ 327/2008 e da Portaria n.ᵒ 937/2008) para perceber que há distinções. Por exemplo, os empreendimentos turísticos têm de dispor de uma recepção. Acho que é uma diferença bastante importante. Aliás, o Decreto-Lei n.ᵒ 128/2014 não autoriza estabelecimentos que preencham os requisitos para ser empreendimento turístico a funcionar como alojamento local. Não é, pois, necessária qualquer alteração ao regime jurídico em vigor para clarificar a “diferença relativamente a outras modalidades de ‘turismo habitacional’”.

Não é, contudo, uma questão conceptual a motivar o Bloco de Esquerda. O problema é, desde logo, ideológico. Como se lê na página 2 do documento submetido ao Parlamento, “a ideia original de alojamento local, ligada ao conceito de economia de partilha, […] foi subvertida e assimilada por grupos económicos ligados ao turismo”. Ah, os grupos económicos, esses subversores! Esta será uma das muitas coisas em que discordo do BE, mas cada um tem direito à sua opinião. Já os factos estão menos abertos a discussão. E estes têm uma narrativa ligeiramente diferente: a grande maioria dos proprietários tem apenas um registo e são eles quem gere a respectiva unidade. Não se tratam propriamente de plutocratas, exploradores da classe trabalhadora.

Mas o argumento principal prende-se com a relação entre turismo e habitação. Revela o BE – embora sem citar a fonte, nem explicar se se refere a unidades, quartos ou camas – que “em junho de 2016, os estabelecimentos de AL representavam já cerca de um terço da oferta turística da região de Lisboa.” E qual é o peso de Lisboa no alojamento local? 19%!, diz-me o Registo Nacional de Turismo; 42% dele fica no Algarve, que não é certamente a região de residência dos proprietários. Ou seja, vamos criar um problema à escala nacional por causa de eventuais desequilíbrios em algumas freguesias de Lisboa e Porto. Aliás, o próprio projecto de lei reconhece existir grande diversidade regional. No entanto, parece ignorá-la quando propõe uma legislação que se aplicará também na “paisagem”.

Aqui cito Luís Aguiar-Conraria: “leis nacionais não podem servir para resolver problemas locais e satisfazer pequeníssimas minorias”. E recupero uma proposta que fiz há umas semanas: diferenciar a taxa turística por freguesia, em função do rácio de camas oferecidas por residente.

Mas admitamos que sim, que Lisboa e Porto merecem o sacrifício do país inteiro. Diz o Bloco de Esquerda que o alojamento local, usando o braço armado da actual lei de arrendamento urbano, reduziu a oferta no mercado imobiliário e fez subir o preço do metro quadrado para níveis especulativos, sendo responsável por um fenómeno de “gentrificação” nos centros das cidades e nos bairros históricos.

Sobre isto já escrevi vários artigos, onde questionei – e ilustrei com recurso a estatísticas as razões do meu cepticismo – que seja o turismo o único ou sequer o principal responsável pelo comportamento no mercado imobiliário. Adelino Fortunato escrevia que “a imprensa e as instituições económicas internacionais começaram a dar conta de preocupação com potenciais efeitos recessivos sobre a economia mundial de uma bolha especulativa dos preços das habitações e da envolvente do sector imobiliário”. Escrevia isto em Agosto de 2005. Um bocadinho antes do Airbnb.

Não significa isto que eu seja insensível ao que o Bloco de Esquerda descreve como “expulsão para as periferias de moradores habituais, frequentemente idosos e geralmente com níveis de rendimento incapazes de enfrentar o aumento dos preços.” Pelo contrário, estas situações merecem toda a minha atenção. Por isso é que quero uma política social de habitação digna desse nome, implementada por quem tem o dever de a conduzir. Que não são os senhorios, que durante anos e anos perderam dinheiro com as propriedades que tinham e que também são pessoas dignas da nossa sensibilidade social.

E é por ter sensibilidade social que me preocupam os devastadores efeitos que a aprovação deste projecto de lei teria. Só na área metropolitana de Lisboa o impacto económico directo cifra-se em proveitos de 285,9 milhões de euros (1% do PIB), mais de 5000 empregos e 48,8 milhões de euros em receita para o Estado. Não seria só a Web Summit a sumir-se…

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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