Há uns tempos, quando escrevi sobre este tema, defendi que a ideia de que a poupança é necessária para financiar o investimento era errada e que poderia até ser contraproducente. Como afirmei então, a causalidade em questão assenta em dois pontos: numa interpretação errada da identidade em Contabilidade Nacional, que diz que o investimento é igual à poupança; e na concepção convencional do funcionamento dos bancos e do seu papel na economia, segundo a qual os bancos precisam de obter depósitos antes de concederem empréstimos. Quanto ao segundo ponto, de referir apenas que o Banco Central Alemão veio recentemente defender precisamente a mesma ideia: “Isto refuta uma concepção popular e errada de que os bancos actuam simplesmente como intermediários quando concedem empréstimos, ou seja que os bancos só podem conceder crédito usando fundos que tenham sido anteriormente depositados por outros clientes.”

Relativamente ao primeiro ponto, na altura em que escrevi o texto fiquei com a sensação de que não tinha sido suficientemente claro nas explicações relativamente ao primeiro ponto, que estava a ser exageradamente ambicioso ao tentar explicar em poucas linhas algo que não é assim tão simples. Esta sensação foi confirmada pela reacção de um dos visados, o economista Ricardo Arroja, e desde então que fiquei de voltar a tentar expor o que penso sobre o assunto.

Com a recente insistência na identificação da falta de poupança como um entrave ao investimento, a propósito da edição do livro “Poupança e Financiamento da Economia Portuguesa”, parece-me que esta é a altura certa para voltar a este tema.

Comecemos por algo em que estamos todos de acordo. Em Contabilidade Nacional, para uma economia fechada, a poupança (S) é sempre igual ao investimento (I) efectuado, a famosa identidade S=I. Numa economia aberta, a diferença entre poupança e investimento é igual ao saldo da balança corrente. Quando a poupança é superior ao investimento, o nosso saldo com o exterior é positivo, quando é inferior o saldo é negativo. Isto é verificado por definição. Sempre. Em todos os momentos.

A interpretação habitual, e errada, destas identidades é a de que é necessário haver poupança para financiar o investimento e quando não há poupança interna suficiente para o fazer, temos que obter poupanças no exterior e portanto aumentar a nossa dívida externa. É esta interpretação que leva aos habituais apelos à poupança, como condição necessária para que haja investimento. Em defesa de quem os faz, esta é a interpretação que se encontra na esmagadora maioria dos livros de economia.

Para que se perceba quão errada é esta interpretação é necessário perceber o que é realmente poupança e investimento na identidade em questão. O que se segue é uma tentativa de explicar estes conceitos e baseia-se nos artigos que já referi no texto anterior – nomeadamente este, este e este.

O património líquido – a sua riqueza – de uma família, empresa ou qualquer outra unidade económica é a diferença entre os seus activos e os seus passivos. Os activos podem ser divididos em ativos financeiros e não financeiros, que denominaremos de ativos reais, enquanto todos os passivos são financeiros. Nem todos os activos reais são considerados para o cálculo do património de uma unidade económica. Os activos reais que entram nesta contabilidade são aqueles que são considerados relevantes para a produção de bens e serviços, também conhecidos como capital. A diferença entre os activos financeiros e os passivos dá-nos a posição financeira líquida de uma unidade económica e portanto o seu património líquido não é mais que a soma dos seus activos reais com a sua posição financeira líquida. Por exemplo, alguém que tenha uma casa de 100 000€, uma conta no banco de 5 000€ e uma dívida ao banco de 70 000€, tem uma posição financeira líquida de –65 000€ e um património líquido de 35 000€ (100 000€ – 65 000€).

Qualquer activo financeiro de uma unidade económica é um passivo financeiro de outra. A conta que temos no banco é um passivo do banco, a acção que temos de uma empresa é um passivo dessa empresa, o certificado de aforro que detemos é um passivo do governo, assim como a nossa dívida ao banco é um activo do banco. Isto significa que quando consideramos uma economia (fechada ou a nível global) como um todo, quando agregamos todos as unidades económicas obtemos uma posição financeira líquida nula. Ou seja, o património líquido de uma economia fechada é composto exclusivamente pelos seus activos reais.

O rendimento disponível que uma unidade económica obtém ao longo de um determinado período de tempo pode ser “poupado” ou gasto em dois tipos de bens, de consumo e de investimento.

Os bens de investimento são os bens que entram para o cálculo do património líquido de uma unidade económica referido anteriormente. Portanto, investimento é uma despesa nesse tipo de bens. De referir que o que é considerado bem de investimento ou de consumo é completamente arbitrário. Por exemplo, até há bem pouco tempo despesas das empresas em investigação e desenvolvimento não eram consideradas investimento e actualmente são. Além disso, dependem também de quem adquire o bem. Por exemplo, um automóvel é um bem de investimento quando adquirido por uma empresa e um bem de consumo quando é uma família a fazê-lo.

Sendo investimento uma despesa que aumenta, no mesmo valor, os activos reais de uma unidade económica, as despesas de investimento não alteram o património líquido de quem investe. Imaginemos uma empresa sem activos reais, com 50 000€ no banco e sem dívidas – o que dá um património líquido de 50 000€  –, que decide comprar um carro no valor de 30 000€. Após investir no carro, a empresa fica com 30 000€ de activos reais e 20 000€ no banco, mantendo-se o seu património líquido em 50 000€.

Isto significa que dos três destinos possíveis do rendimento disponível (“poupar”, investir ou consumir), apenas a despesa em bens de consumo significa uma diminuição do património líquido da unidade económica em questão. Daí vem que a definição de poupança é dada pelo rendimento disponível menos as despesas em bens de consumo. Isto não é mais do que a variação do seu património líquido. O que investimos, isto é, os activos reais que acumulamos, é uma parte do que poupamos, é a parcela de activos reais dessa poupança.

Repare-se que esta definição difere do que normalmente se entende por “poupança”, que é simplesmente o rendimento disponível menos todas as despesas efectuadas. Esta noção mais intuitiva de “poupança” – que em Contabilidade Nacional se denomina por Necessidade/Capacidade Líquida de Financiamento – ignora os bens reais, focando-se apenas na posição financeira líquida e portanto será referida como “poupança” financeira.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.

 

Nota: A segunda parte deste artigo será publicada amanhã.